Friday, December 3, 2010

«Chapitô à vela», in REVISTA DA ARMADA

Estabelecer condição geral 21, Faina Geral de Mastros”. Foi com este aviso, ao ETO do NTM “Creoula”, que 33 jovens com idades compreendidas entre 16 e 24 anos estudantes da Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espectáculo, mais conhecida por Chapitô, tiveram o seu primeiro contacto com o mar. Para quase a totalidade destes jovens, esta é a sua primeira experiência de embarque. É Segunda-feira dia 4 de Outubro de 2010. Durante todo o fim-de-semana anterior, ventos predominantes de sudoeste fustigaram a costa continental, potenciando uma ondulação a ultrapassar bem os três metros de altura. Hoje, no entanto, o vento encontra-se fraco, mas a ondulação mantém-se. Os alunos, designados de ‘instruendos’ a bordo do “Creoula”, ocupam os seus postos de faina. Distribuídos pelos mastros apresentam-se aos Cabos e Marinheiros que irão coordenar as suas acções para levar a bom porto aquele que agora também é o seu navio. Primeiro a segurança pessoal. A sua percepção do funcionamento do aparelho é preciosa para a redução do risco. Este objectivo é conseguido ao longo da navegação pois advém bastante da experiência, mas estes acontecimentos sucederam com rapidez. Este sucesso poderá explicar-se por grande parte destes instruendos lidarem no curso de “ofícios” com cenografia e, como tal, a manobra com cabos, aparelhos de força e cargas suspensas é-lhes muito familiar.

O pano começa a ser içado. Estamos a navegar a um largo. Faremos um bordo para sudoeste para depois guinarmos em direcção a Sesimbra. Após terminada a faina geral de mastros os instruendos reocupam os seus postos. Eles, à semelhança da guarnição do navio, irão navegar num regime de quartos. Vão desempenhar cargos na cozinha e nas copas, onde irão participar na preparação e confecção das refeições, e no apoio directo à sua distribuição no refeitório com posterior lavagem da palamenta. Vão também ocupar postos em funções associadas à manobra do navio: Vigia, Leme, Cabo-de Quarto e Navegação. Neste conjunto de instruendos encontram-se também professores do Chapitô. A sua liderança em relação aos alunos é visível e notada nestas pri¬meiras acções a bordo. Também eles jovens, prezam por incutir a disciplina e o respeito pelos demais. É que os alunos estão em preparação para uma vida ligada ao espectáculo circense, onde a disciplina, a confiança e a coordenação entre os envolvidos é crítica tal como numa guarnição em faina.

Aproximamo-nos de Sesimbra. Preparamos o navio para fundear e passar a noite. Dia 6 pela tarde teremos que estar atracados em Alcântara para ultimar a preparação do espectáculo a bordo denominado “The Happening”, que será a cerimónia de abertura do ano escolar do Chapitô, em que estes instruendos irão actuar.

Tempo para ainda na manhã de 5 de Outubro demandar a barra do porto de Setúbal. Ali, também o aumento de exigência não é levado com estranheza por estes aprendizes de artistas, mas sim, também eles aumentam o seu empenho. Ao passar no Outão os tradicionais toques de sereia é que os surpreendem; inicia-se de imediato as perguntas “Porquê? Estava alguém no nosso caminho?”, onde todos os elementos da guarnição se transformam em explicadores. Aproximamo-nos do fundeadouro cerca do Ponto de Apoio Naval de Tróia. Após a ordem do ‘larga ferro’ o “Creoula”, em matéria de segundos, roda e aproa a jusante. O tempo agora é para os instruendos continuarem os seus preparativos. Entre esses, as actividades de educação física têm principal destaque. Para os acrobatas e malabaristas a condição física é raiz da sua actividade.

Após o almoço iniciamos a navegação para Lisboa, onde entramos já de noite, após uma tarde de vela com todo o pano. O cenário nocturno e iluminado desta cidade arrebata corações. Fundeamos novamente, agora no Mar da Palha.

A manhã seguinte traz chuva consigo e a previsão para o dia 8, dia do “The Happening”, é muita chuva e vento forte. Condicionado pela maré, o “Creoula” inicia a entrada na Doca de Alcântara à tarde. Após atracar nota-se orgulho nos instruendos do 2º e 3º ano por terem navegado. O deslumbre pela beleza deste navio e pelo cenário que propicia é evidente entre todos. O “Creoula” é o “meu” navio, ouve-se!

Dia 8 de Outubro ao final da tarde constatam-se as previsões. O vento forte de quadrantes de sul trouxe muita chuva. Assistimos desde que aqui chegámos a um grupo de pessoas dedicadas e incansáveis na preparação do seu espectáculo. Tivemos o privilégio de ver os bastidores e também senti-los. Na verdade este esforço lembra também o nosso, marinheiros, quando preparamos o nosso navio para o mar. Durante estes dias assistimos a montagens de material para cenário a bordo e no cais, alterações, ensaios pela noite dentro originando poucas horas de sono seguidas por alvoradas para limpezas do navio que continuam a habitar, alterações, cancelamentos de alguns números contidos no próprio espectáculo, alterações… Mas dizem que a fundadora e Presidente do Chapitô – Teresa Ricou, tem “uma estrelinha” e, à última da hora, sem aviso prévio, o vento e a chuva deram uma pequena aberta e, numa decisão de último instante, decide levar adiante o espectáculo tantas vezes ensaiado. Tudo corre bem. Segue-se a abertura do ano escolar do Chapitô, onde curiosamente é distribuída uma maçã (símbolo do pecado original…) que depois de mordida vincula para sempre a pessoa ao projecto. Posteriormente procedeu-se ao embarque dos alunos do 1º ano em substituição dos que até hoje estavam a bordo.

Resta ao “Creoula” navegar dia 9 e 10 com os alunos do 1º ano do Chapitô, agora também com a presença de Teresa Ricou. Que pessoa e que projecto de acção social tão extraordinários. Que orgulho sentimos em poder participar.

A despedida é sempre nostálgica e terá sido porventura a primeira vez que aqueles alunos e professores sentiram a emoção e o gosto agridoce do “destacar”. Que bom foi conhecê-los. Esperamos que o “Creoula” tenha contribuído para a sua formação e enquadramento. Obrigado Chapitô, gostámos muito de os ter a bordo. Ah! A maçã era muito saborosa!

(Colaboração do COMANDO DO NTM “CREOULA”), in REVISTA DA ARMADA, n.º 447, edição de Dezembro de 2010. Ver [AQUI].

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