Thursday, April 26, 2007

«O Círio», por F. Carvalho Rodrigues

«Sempre houve um templo onde o vale começa. Sempre houve uma praia onde o vale termina. Quero acreditar que Achiles lhe deu o nome: Chelas. Em tempo houve braço de rio. Noutro tempo, havia noras e hortas. Carros de bois e charrettes de cavalos que iam a Lisboa. Havia comboios, palácios, searas e animais que eram em pedra. Havia quintas e fábricas. Havia aprendizes, operários, mestres, engenheiros e oficiais do exército. E, depois, havia … nós. Um bando. Íamos à escola, da D.ª Laura, da Voz do Operário. Jogávamos à bola na rua e quando nos deixavam no campo do Operário. Fazíamos barcos no Verão. Bonecos de barro no Inverno. Éramos os donos da rua, dos campos, da mata e da praia. Até que … um dizia a outro, baixinho, para que ninguém perdesse a face: a tua avó já chamou por ti … duas vezes. Ia, então, devagar enquanto me viam, a correr, depois, até casa da minha avó.
A minha avó, aquela, era uma católica muito devota. Tinha sido operária na Fábrica da Pólvora. E, na Fábrica da Pólvora, tinha havido um incêndio em 1923. Aconteceu no armazém do algodão. E o armazém era a Igreja do Convento de Chelas. Lugar do Templo de Vestais do século VII antes de Cristo. Pode ver-se o que a história deixou no Museu do Carmo. Depois, pelo rio, chegaram as relíquias de S. Félix, mártir do século IV. Em 665 a Igreja Visigótica recebe-as do rei Recesvinto. É mesquita. No século IX, Afonso III de Leão e das Astúrias entrega ao Templo de Chelas as relíquias de Santo Adrião e da mulher, Santa Natália. D. Afonso Henriques volta de novo a sagrá-lo para a Igreja Católica, antes de entrar em Lisboa. Vieram monges e monjas. Depois, só monjas. D. Afonso III de Portugal gostava de por lá ficar. A Marquesa de Alorna foi forçada a estar na companhia dos filhos. Depois de 1755 é guarnecida pela talha portuguesa. Um dia chegou a Fábrica da Pólvora. Noutro dia, nos anos cinquenta, um movimento encabeçado pela minha avó reabre o local como Templo de S. Félix e de Santo Adrião. Eu, começava a conhecer-me. Mas, por alguma razão, eu lembro-me e recordei-me, sempre, toda a vida, que uma senhora veio e disse: sabem, do incêndio, eu salvei a imagem de Nossa Senhora da Atalaia do Círio de Chelas. O ano era o de 1956. E a imagem voltou onde sempre esteve: a Igreja do Convento de Chelas.
Fiquei a saber de Nossa Senhora da Atalaia que era também a das Alfândegas. E da maior procissão do Tejo, de todos os círios da margem Norte, a de Nossa Senhora da Atalaia na outra banda, no concelho do Montijo. Entretanto, o mundo foi o que foi e um dia encontrei na Moita uma canoa que o tempo me emprestou para ser, por um tempo, minha e eu tomar conta dela. E por essa canoa encontrei, arrais, patrões, catraieiros, sotas e moços do Centro Náutico Moitense. Homens livres. Homens com a sabedoria do mar e do rio. E com eles fomos um dia com o Senhor João Gregório, o Arrais, e a Da. Nazaré até ao Santuário de Nossa Senhora da Atalaia. Devoção secular, segurança, apego e promessa de ir até lá venerar a Deus e à Senhora, em anos de peste. Encontrámos um homem, Padre, de nome Abraão que nascera em Angola e era em 2005 Reitor do Santuário. E fomos a Chelas, e encontrámos outro Padre, Frei Paulo, nascido em Itália. E todos, como um só, fizemos o “Círio da Fundação” que assim quis o Padre Abraão que se chamasse porque fazia quinhentos anos da primeira notícia da procissão no Tejo.
E esse ano o sagrado voltou a unir as duas margens com os varinos, as fragatas, os botes, as canoas e os catraios vindos de todos os portos do Tejo, engalanados de velas ao sol no equilíbrio último do homem português. O equilíbrio entre o seu templo, a sua devoção, o seu meio ambiente acarinhado pela Mãe de Deus, de Atalaia. Este ano de 2007 ainda outra vez esperamos, Deus querendo, que a dois e três de Junho Nossa Senhora na invocação da Atalaia venha unir na quintessência divina, o ar, a água, a terra, a luz e os homens de todo o mundo e os das duas margens do Tejo.
Deus guardando-nos, havemos de o fazer de dois em dois anos.»

2 comments:

LisbonGirl said...

Que bonito e que interessante! Uma outra visão de Chelas! Não sabia que o nome talvez tenha vindo de Achiles! Faz sentido já que Ulissipo talvez tenha vindo de Ulisses!

pereira de oliveira said...

que curioso...no escudo da Atalaia...a cruz de Santiago em azul como a dos cavaleiros da Sailor Girl...soo ee ligeiramente diferente o azul...ee noos todos sabemos quem, por noos, esta sempre de Atalaia...a Sailor Girl